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quinta-feira, 28 de agosto de 2014

O Real Decreto 624/2014, de 18 de julio: pagar mais para ler em Espanha. O projeto de Lei 118 XII: pagar ainda mais para aceder à internet em Portugal

Com a internet, o acesso massificado à cultura estendeu-se mais ou menos livremente a todos os continentes. Na verdade, nunca antes desta era, qualquer autor de qualquer objeto artístico pôde ser tão lido, visto e ouvido.

É por isso que é sobretudo a partir da transição do século que as entidades de gestão colectiva do direito de autor (bem como as grandes empresas multimédia) que se foram constituindo e consolidando a respetiva atividade na Europa, ao longo do século XX, começam a defender o aumento dos Direitos de Autor em detrimento do Domínio Público, ou seja do aceso livre às referidas obras.

No caso específico das Bibliotecas Públicas europeias, aquelas entidades e empresas (nem tanto os autores) constituíram-se num lobby europeu em defesa de legislação que imponha o maior número possível de taxas à utilização e fruição de todos de bens audiovisuais.

Como as Bibliotecas Públicas ao adquirir esses bens já pagavam direitos de autor, a União Europeia avança com legislação que propõe o pagamento de uma taxa pelo empréstimo domiciliário, até então sempre gratuito, de livros, cds e dvds. Os países do Sul da Europa, alegando sobretudo a fragilidade dos hábitos de leitura dos respetivos países, para além do esforço de construção e de manutenção de redes nacionais de bibliotecas públicas, iniciado nos finais do século XX, tentam e conseguem eximir-se e protelar esta imposição legal. Estamos em 2004. Contudo, a pressão de imposição da Diretiva Europeia de Defesa dos Direitos de Autor e Direitos Conexos continua a ganhar terreno.

Em Espanha, por exemplo, quando o governo espanhol adere a esta Diretiva (2007), os bibliotecários públicos organizaram-se no movimento NO AL PRESTAMO PAGO que sistematizou e divulgou amplamente as razões pelas quais as Bibliotecas Públicas não deveriam jamais cobrar o empréstimo aos seus leitores pelas obras compradas por cada Biblioteca.



As principais razões invocadas baseiam-se em todo o trabalho que as Bibliotecas investem na identificação, manutenção e divulgação das obras que detêm, bem como na promoção que fazem dos respetivos autores, inclusivamente quando as obras se encontram esgotadas no mercado.Ver uma breve história da imposição do empréstimo pago aqui.


Contudo, o Estado espanhol acabou, nesse mesmo ano, por assumir o pagamento desta dívida, a cujo valor se chegou com base num cálculo de empréstimos realizados. Com o progressivo avanço das políticas neoliberais que se vêm alastrando por toda a Europa, o atual governo espanhol decide consolidar este ónus cultural. Assim no dia 1 agosto deste ano, ou seja, em pleno Verão, foi publicado no Boletim Oficial do Estado «o Real Decreto 624/2014, de 18 de julio, por el que se desarrolla el derecho de remuneración a los autores por los préstamos de sus obras realizados en determinados establecimientos accesibles al público.»

«Según el real decreto estarán sujetos a la compensación a los autores por el préstamo de obras con derechos de propiedad intelectual los museos, archivos, bibliotecas, hemerotecas, fonotecas o filmotecas de titularidad pública o que pertenezcan a entidades de interés general de carácter cultural, científico o educativo sin ánimo de lucro.» O decreto isenta de pagamento as bibliotecas escolares e os ayuntamentos com menos de 5000 habitantes.

O Conselho de Ministros afirma que este pagamento  «en ningún caso supone cargas para los ciudadanos», na medida em que o real decreto «afecta fundamentalmente las administraciones públicas titulares de estos establecimientos». Todavia, se as bibliotecas públicas espanholas, como tantas outras na Europa e nos EUA, já se debatem com cortes brutais nos seus pressupuestos, tendo mesmo chegado a orçamentos 0 (zero) para aquisição de obras, como poderão pagar agora para a respetiva utilização?


Dados obtidos nesta Plataforma.
Em Portugal, a Diretiva Europeia não foi aplicada com a justificação evidente de que as bibliotecas públicas portuguesas são equipamentos culturais muito recentes, e que se está realizando um enorme esforço da construção e da manutenção da Rede Nacional de Bibliotecas Públicas (RNBP). A estes factos acrescem ainda os frágeis hábitos de leitura da população portuguesa.



Contudo, também na sequência do que se passara em Espanha, em 2008 começa a falar-se entre bibliotecários nos perigos da aplicação Diretiva Europeia em Portugal, como se pode verificar pela tomada de posição da BAD (Associação Portuguesa de Bibliotecários, Arquivistas e Documentalistas).

Em 2012, a Sociedade Portuguesa de Autores envia um ofício «a diversas entidades titulares de bibliotecas públicas alertando para a necessidade de requerer autorização e pagar uma taxa pela realização de "espetáculos", que incluem atividades de animação e dinamização da leitura habitualmente realizadas em bibliotecas de que é dado como exemplo "A hora do conto"». Na sequência de alguns contactos e alertas para as graves consequências desta situação, como o da BAD, o conselho de administração da SPA anulou o referido ofício.

Em 2013, a Gedipe (Associação para a Gestão de Direitos e Autor, Produtores e Editores) criada em Março de 2012, tenta agora ela fazer cobrar o empréstimo de obras nas Bibliotecas Públicas, sendo de novo contestada, entre outros, pela BAD.

Na impossibilidade de cobrar o empréstimo e, sobretudo, na ausência de investimento significativos em aquisições de obras por parte da maioria das bibliotecas públicas portuguesas, a empresa de gestão de direitos de autor, GEDIPE, concentra-se, à semelhança das suas congéneres europeias. na pressão para que sejam taxados todos os equipamentos que permitem a cópia ilegal, a saber:



O que significa que a partir de hoje o governo de Portugal aprovou o Projeto de lei 118/XII no qual se decreta que a a compra de qualquer destes equipamentos integrará, desde logo, uma taxa destinada a pagar Direitos de Autor, mesmo que quem os compre nunca os utilize e que, se o fizer, o faça, pagando-os deste modo em duplicado.

Em Portugal como em Espanha o acesso livre à cultura por parte de todos encontra-se progressiva, mas incontestavelmente cerceado em prol de uns quantos poucos, entre os quais os autores não serão com certeza quem mais recebe.


1 comentário:

  1. ¡Gracias por compartir tu post en #encirc14!

    Es un gran aporte, ya que se habló mucho de la situación en España y es bueno conocer qué pasa al respecto de las bibliotecas en otros países europeos, afectados también por esta Directiva. Es interesante ver que los países adoptan distintas respuestas y sobre todo que esas respuestas son posibles y justificadas.

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