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quarta-feira, 6 de agosto de 2014

Aprender a comunicar em público: ler em voz alta e contar (*)

A partir de uma certa altura da vida, damo-nos conta de que domínio da leitura em voz alta e da oralidade são duas competências reservadas a uma elite de profissionais qualificados:

Jornalistas,
políticos,
apresentadores, 
comentadores,
contadores...
A maioria de nós não se encontra devidamente habilitada para o fazer, o que conjuntamente com a incapacidade de nos exprimirmos corretamente por escrito, se traduz numa das grandes falhas da nossa qualidade de vida e da prática efetiva da cidadania em Portugal.

Porque o domínio da oralidade e da escrita permitem-nos ser mais conscientes em relação a nós próprios e ao mundo que nos rodeia, o que as limitações da nossa democracia demonstram. E, no entanto, a escrita e a oralidade são meras técnicas que se aprendem facilmente na infância e na juventude e mesmo ao longo da vida.

O exemplo mais conhecido desta afirmação são as TED Talks, TED: Ideas worth spreading. Promovidas pela fundação americana sem fins lucrativos, TED, contam-se por milhares as conferências destinadas à divulgação de todo o tipo de ideias na Europa, Ásia e Estados Unidos já disponíveis online.


«TED é uma comunidade global, aberta a pessoas de todas as disciplinas e de todas as culturas, que procura aprofundar o conhecimento do mundo. Acreditamos apaixonadamente no poder das ideias para mudar atitudes, vidas e, em última instância o mundo.» [1984, 2006 (online)…]

Catherine Bracy
Why good hackers make good citizens.
Roselinde Torres
What it takes to be a great leader.
Maya Penn
Meet a young entrepreneur, cartoonist, designer, activist. 
Harish Manwani
Profit’s not always the point.
Diana Nyad
Never, ever give up.
Rose George
Inside the secret shipping industry.
Para ser convidado a falar numa Ted Talk apenas é necessário ter uma ideia inovadora e querer partilhá-la com outros. Nas Ted Talks falam pessoas dos mais diversas idades e proveniências. 





Com certeza que falar de uma ideia em que acreditamos e que levámos à prática constitui de per si uma importante motivação para falar em público.Contudo, se atentarmos bem, todos estes conferencistas são apoiados por uma sofisticada técnica multimédia que lhes permite dominar um anfiteatro cheio de centenas de espetadores. Uma parte das técnicas de apoio, evidentemente.




De entre as mais diversas técnicas de aprendizagem da arte de falar em público, contam-se indiscutivelmente o ensino da leitura em voz alta e o da narração oral. Há quase um século arredadas da escola e da família, estas duas práticas deveriam privilegiar a poesia e os contos. 

Ler em voz alta e contar um conto em público implicam expormo-nos muito mais do que apenas aprender a colocar a voz, a exercitar a memória ou a controlar a exposição física perante uma audiência. O domínio de si mesmo e o domínio da audiência são as grandes conquistas técnicas a empreender, quando dezenas, centenas, mil pares de olhos nos fitam.




Porque prender a atenção de um público durante 15 a 20 minutos não é tarefa fácil, mas não deixa de constitui um treino como muitos outros e, posto em prática, pode torna-se mesmo numa dependência. Temos inúmeros exemplos disso, do star system à política nacional, os famosos 15 minutos de fama de que Andy Warhol fala e a que todos aspirariam, «a celebridade instantânea», podem ser tão poderosos quanto uma droga.



Nestes casos, pode acontecer o pior: perder-se o controle do auditório e o público deixar de nos ouvir. O que acontece, em primeiro lugar porque aquele que fala para um público deixou também de o ouvir. E saber ouvir é hoje outra competência não desenvolvida, nem treinada: por isso também a maioria das pessoas não sabe ouvir.


Psicanalista, escritor e pedagogo brasileiro.
Ora, o treino da escuta é tanto mais necessário quanto vivemos num mundo barulhento, tumultuoso, audiovisualmente hiperestimulante, dominado pelas técnicas agressivas e impositivas de publicidade que nos rodeia. Neste contexto é evidente que também tínhamos de deixar de saber ouvir. Treinar a escuta e o silêncio ativos oferecem-nos concentração e aquietamento interior. E são tão necessários à introspeção e ao conhecimento de nós próprios como à do mundo que nos rodeia.

Tanto a leitura em voz alta como a narração oral implicam, entre outros aspetos, uma apropriação individual e subjectiva do texto, a respetiva interiorização tanto no que concerne ao sentido como aos sentimentos que o texto nos provoca. A leitura em voz alta parece-nos, contudo, uma técnica mais fácil do que a da narração oral, na medida em que aquela nos fornece a segurança do apoio textual. A narração oral implica um esforço mental e emocional provavelmente superior: um conto não se decora, embora se decorem partes do conto e a ligação entre as partes, bem como a ênfase nos pontos de viragem ficam, como a improvisação, por conta de cada um...


National Storytelling Festival, Jonesboroug, Tennesee.
Maratón de los Cuentos de Guadalajara. 

Uma das características da nossa espécie é a de nos contarmos em permanência histórias e narrativas mais ou menos breves, à nossa medida e à medida do nosso quotidiano. A fruição estética e ética da literatura permitem-nos elevar o nosso nível de conhecimento tanto racional como emocional, tanto sobre nós próprios como sobre o meio em que vivemos. Como a psicanálise há um século já nos explicou, o homem que conta humaniza-se e, se se empenhar, ilumina a obscura matéria de que são feitos os sonhos, os pesadelos, os medos e as utopias. 


Porque os mitos e os verdadeiros contos, que atravessam a história da nossa humanidade, ensinam-nos, a tomar o comando das nossas vidas nos momentos mais difíceis e cruciais da nossa existência e da da nossa comunidade. Pautam-se por valores como a identidade, o sentido de pertença, a solidariedade, a partilha, a coragem, a criatividade... Através da associação de imagens mentais, de sensações e de sentimentos mais ou menos inconscientes, ao som milenar da voz humana, a voz que sussurra, que chora e grita, que embala, que canta, que conta. Que nos conta.


(*)  Este post teve uma origem numa comunicação que elaborei para o II Encontro Literário de Leitura em Voz Alta, realizado no Funchal pelo extraordinária Associação Contigo Teatro, em 21 e 22 de março deste ano. 

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