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quarta-feira, 30 de maio de 2012

«Abraçar o mundo sem deixar ninguém de fora»: serviços de extensão bibliotecária e cultural das Bibliotecas Públicas portuguesas: as BIBLIOTECAS CAIXA *



Os serviços de extensão bibliotecária e cultural das Bibliotecas Públicas radicam na respectiva vocação universal − oferecer a todos toda a informação disponível − que é simultaneamente a característica identitária e a imagem de marca da Bibliotecas Públicas. Com efeito, mais do que qualquer outro equipamento cultural, a Biblioteca Pública − ao assumir-se como ponto de convergência entre o indivíduo e a comunidade, o passado e o futuro, o conhecimento e o lazer − encontra-se estruturalmente vocacionada para proporcionar a possibilidade de nos conhecermos a nós próprios e ao mundo à nossa volta.
 
ORIGEM

Na segunda metade do século XIX, o regime liberal, ao promover uma nova política para a cultura, começa a publicitar em Portugal a ideia de biblioteca pública: um equipamento cultural cujo objectivo é o de alargar o conhecimento às mais vastas camadas da população e a todo o espaço nacional.

Neste sentido, a tentativa de levar a cabo uma política integrada de bibliotecas vai consubstanciar-se, entre outra documentação, no Decreto de 2 de Agosto em 1870 que propõe a criação de bibliotecas populares, um novo tipo de bibliotecas que reuniriam os conhecimentos elementares e se destinavam às classes mais necessitadas. Este decreto obrigava cada câmara a criar pelo menos uma biblioteca na capital do concelho. As juntas de distrito e as juntas de paróquia eram igualmente autorizadas a organizar bibliotecas populares.

Este documento vem pois consagrar, no nosso país, uma grande mudança: a alteração do paradigma de biblioteca substituindo o das grandes bibliotecas-livrarias conventuais, espaços de introspecção e de cultura dirigidas a comunidades restritas de leitores. Os ideias republicanos incentivam deste modo a criação de grandes bibliotecas públicas do regime, nas capitais de distrito, bem como de bibliotecas populares, mais pequenas , que se pretendiam espaços de instrução e de informação, adstritas a instituições de ensino, profissionais e de classe.

Esta mudança implica, então, também uma mudança do público a que as bibliotecas se destinam: do leitor mais contemplativo e erudito do passado para um novo leitor-utilizador mais activo que necessita de novos conhecimentos que o ajudem a adaptar-se a uma nova realidade social, económica e técnica.

Nasce, assim, em Portugal o conceito de Biblioteca Pública como hoje a conhecemos.

Os serviços de extensão bibliotecária constituem, pois, parte integrante das Bibliotecas Públicas e estão patentes na documentação através da qual a República vai tentar pôr em prática os serviços característicos destas novas bibliotecas que os documentos da época referem explicitamente: para além do livre acesso, do empréstimo domiciliário, das salas infantis…:

      a leitura nos Caminhos de Ferro,
      a leitura nos hospitais,
      a leitura nas prisões e...
      as colecções móveis.

De todos estes serviços, o que se viria a tornar mais popular e duradouro foi o das bibliotecas móveis, designação do início do século XX para as bibliotecas-caixa.

 
BIBLIOTECAS-CAIXA: as grandes protagonistas

Com efeito, a constatação da ausência de bibliotecas populares, em 1914, levou os então Serviços de Inspecção das Bibliotecas Populares e Móveis, da administração central, a iniciar um processo centralizado de organização e «distribuição» de bibliotecas. Segundo Augusto Pereira de Betencourt Ataíde, estas novas bibliotecas móveis inspiravam-se nas pequenas traveling libraries instaladas em carros de rodas que acompanhavam os trabalhadores das florestas, minas e vias férreas da Austrália e do Canadá. Segundo este funcionário dos Serviços de Bibliotecas da República, a versatilidade destas bibliotecas explica por que foram rapidamente adoptadas para difusão da leitura em localidade distantes, sob a forma de caixas e caixotes de todos os tipos, em diferentes países (Alemanha, Holanda, Suécia, Noruega).

A primeira biblioteca móvel portuguesa é, pois, a CAIXA-ESTANTE, modelo proposto por Augusto Ataíde, adaptado das congéneres alemãs e registado em 1914 pela Inspecção das Bibliotecas e Arquivos. Concebida como uma biblioteca autónoma, dado que integrava estantes, livros, catálogo e sistema de empréstimo, esta biblioteca móvel foi pensada de modo a poder adaptar-se a todos os tipos de transporte, nomeadamente as carroças e o caminho de ferro, «enquanto o automobilismo, revolucionando o serviço da bibliotecas ambulante, as não fizer regressar ao primitivo tipo de instalação em carro, embora notavelmente melhorado». A biblioteca móvel de Tipo A tinha capacidade para 400 livros. A do tipo B, 200.

Biblioteca móvel de tipo A (400 livros)

Em 1922, circulavam no nosso país 22 bibliotecas móveis de tipo B, e em 1926, 19. Não temos conhecimento da existência efectiva das de tipo A.

As bibliotecas móveis portuguesas do início do século XX estão, como todos hoje sabemos, na origem das bibliotecas-caixa dos nossos dias, as quais no seu conjunto não podem deixar de ser consideradas as grandes protagonistas dos serviços de extensão bibliotecária no nosso país. Com efeito, o serviço de extensão bibliotecária mais difundido em Portugal, em geral concebido e coordenado pelas Bibliotecas Públicas, é o das bibliotecas-caixa: colecções de livros periodicamente renovadas e emprestadas colectivamente a escolas, lares, centros de dia, hospitais, prisões, cafés, etc.

Sob inúmeras variantes, como as caixas de madeira, próximas da Biblioteca móvel de tipo B, ou as Bibliomalas de Arouca, com capacidade para cerca de 25 livros, que são distribuídas pela Biblioteca Itinerante e, quando abertas, se transformam em estante.
    
Bibliomalas de Arouca 2007

Sob a forma de baús em verga, como em Águeda:

Biblioteca Municipal de Águeda – 2006

Ou de caixas em plástico, como as da Biblioteca Municipal de Porto de Mós, que as disponibiliza aos Jardins de Infância, Escolas do 1º. Ciclo do Ensino Básico, Lares e Centros de Dia do concelho.

Porto de Mós - 2008


Porto de Mós - 2008
Ou ainda, agora atualizadas, sob a forma de malas de viagem com rodas, como as Bibliomalas com capacidade para 25 livros da Biblioteca e Centro de Recursos da Escola EBI /JI de Montenegro:

Montenegro, Faro - 2007
A partir do final dos anos 90, foram concebidos alguns projectos de bibliotecas móveis destinados a alguns países dos PALOP, como as que o ex-Instituto Português do Livro e das Bibliotecas ofereceu diversas Bibliotecas itinerantes a Timor e a Moçambique, em fabricada em contraplacado marítimo e pronta a funcionar como estante.

Bibliotecas móveis para Timor e Moçambique – DGLB - 1998


Já o projecto das Bibliotecas Móveis de Saúde, uma iniciativa da Ordem dos Enfermeiros e do Conselho Internacional dos Enfermeiros (ICN), optou por malas de viagem também muito resistentes: oferecem informação actualizada e obras de referência nas áreas da Medicina e da Enfermagem, em português, a profissionais de saúde em áreas remotas ou onde o acesso à formação é particularmente difícil. Em 2007, estas Bibliotecas móveis foram enviadas para São Tomé, Moçambique e Angola.



Biblioteca móvel para Cabo Verde – 2008


BIBLIOGRAFIA

ATAÍDE, Augusto Pereira de Bettencourt –  A organização da primeira biblioteca móvel portuguesa. Anais das Bibliotecas e Arquivos de Portugal. Coimbra: Imprensa da Universidade, 1915, vol. 1 n. 3 p. 89-94: [Em linha]. [Consult. 06-10-2009]. Disponível em WWW: <http://purl.pt/255/2/P36.html>
 

BARATA, Paulo J. S. Os livros e o liberalismo: da livraria conventual à biblioteca pública: uma alteração de paradigma. Lisboa: Biblioteca Nacional, 2003. ISBN 972-565-368-8


MARÇAL, Nuno O Papalagui: crónicas de um bibliotecário ambulante: [Em linha]. [Consult. 06-10-2009]. Disponível em WWW: <http://opapalagui.blogspot.com/>

NUNES, Henrique Barreto Nunes Da biblioteca ao leitor: estudos sobre a leitura pública em Portugal. Braga: Autores de Braga, 1996

 

MELO, Daniel Leitura e leitores nas bibliotecas da Fundação Calouste Gulbenkian (1957-1987): [Em linha]. 2004.[Consult. 06.10.2009]. Disponível em WWW: <http://www.ics.ul.pt/publicacoes/workingpapers/wp2004/WP1-2004.pdf>

TRINDADE, Luís. A leitura pública no Portugal contemporâneo (1926-1987). Etnográfica: [Em linha]. Maio 2006, vol.10, no.1, p. 209-211. [Consult. 06-10-2009]. Disponível em WWW: < http://www.scielo.oces.mctes.pt/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0873-65612006000100015&lng=pt&nrm=iso>. ISSN 0873-6561

VILARINHO, Fernando As bibliotecas itinerantes da Fundação Calouste Gulbenkian (1958-2002). Bibliotecas em Portugal: [Em linha]. 2006. [Consult. 06/10/2009]. Disponível em WWW: < http://bep-suporte.blogspot.com/2006/12/as-bibliotecas-itinerantes-da-fundao.html>


O presente texto, que data do final de 2009, foi redigido em parceria com a minha colega Catarina Costa Macedo e tem por base uma ampla e diversificada pesquisa da documentação que a Internet nos oferece, a qual, como sabemos, é fruto de inúmeros contributos individuais. Neste sentido, e porque acreditamos que o conhecimento é na sua essência colectivo e partilhado, apenas nos pareceu necessário mencionar, na Bibliografia, as principais referências documentais de que nos socorremos para redigir este texto. Assim, cumpre-nos afirmar que, do nosso ponto de vista, a autoria deste texto é também de todos os que, muitas vezes anonimamente, editaram online os textos e as imagens sobre livros, leituras e bibliotecas aqui referidos.